I
Vários romancistas sofrem quando escrevem uma obra de ficção. Alguns fazem uma apologia do sofrimento, que Flaubert tanto evocava em sua correspondência para amantes, leitores, amigos e parentes. Na verdade, ele resmungava contra a dificuldade de escrever, às vezes traduzida por uma cólera autopunitiva ou por palavrões que prefiro não mencionar nesta crônica. Flaubert estava inaugurando o romance moderno, sabia que já não era mais possível nem desejável escrever como Balzac, Stendhal e Zola, três grandes escritores que o antecederam e, de certa maneira, justificaram a escrita bem elaborada e exata do autor de Três contos e A Educação Sentimental.
Mas será que escrever ficção é uma atividade que passa apenas pelo sofrimento? Se fosse assim, a literatura seria um ato constante de masoquismo, uma flagelação do corpo e da mente. Prefiro dizer que Flaubert trabalhava como um louco: reescrevia mil vezes cada parágrafo, duvidava da eficácia de cada frase, procurava uma melodia e um ritmo para dar mais densidade à linguagem.
Flaubert foi um dos escritores mais exigentes e críticos com o próprio trabalho. Para que o leitor tenha uma idéia dessa mania pela perfeição, os manuscritos dos rascunhos dos Três contos somam mais de mil folhas. Depurou tanto, que o livro tem 120 páginas. Para ele, a arte de escrever era inseparável do talento (ou da intuição) de selecionar, cortar, editar. Foi um mestre nisso. Ele renunciou aos prazeres da vida cultural, mundana e festiva de Paris e preferiu isolar-se na numa pacata e tediosa cidade da Normandia. Rompeu essa rotina com viagens ao Oriente Médio e à África - Egito, Líbano, Palestina, Turquia -, e desse mundo exótico pescou temas para escrever parte considerável de sua obra.
II
Agora, ao reler algumas cartas de Flaubert, penso que o prazer pela escrita, mais que o sofrimento, moveu sua vida. Nesse aspecto, ele foi um privilegiado: um herdeiro que dedicou doze ou quinze horas por dia para lutar com as palavras. É um trabalho exaustivo, não poucas vezes exasperador, mas afirmar que é puro sofrimento significa subtrair o desejo que move a escrita. E também a leitura de um texto de ficção.
Sofrimento maior é terminar um romance e cair num vazio, pois os personagens (com seus conflitos, amores, frustrações e ambições) já não existem mais. Ou só existem para o leitor. Nada mais angustiante do que terminar um romance. O fim do mundo fictício gera uma solidão radical, sem os fantasmas que se materializam e falam na imaginação de quem escreve. Porque depois do ponto final, quando cessa o trabalho da imaginação, a realidade cobra seu dízimo. E a realidade é sempre mais complexa e terrível do que a ficção.
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