Daniel Piza, jornalista e escritor |
Desde 2005, quando publicou Cinzas do Norte, Milton Hatoum não escreve nenhum romance. Em 2008 fez uma novela, Órfãos do Eldorado, e em 2009 uma coletânea de contos, A Cidade Ilhada. Mas há três anos trabalha num romance novo, com título provisório O Lugar mais Sombrio, que tem previsão de lançamento para este segundo semestre de 2011. Em se tratando de Hatoum, não se pode afirmar com certeza que o romance será lançado, apenas que “tem previsão de lançamento”. Isso porque ele é um escritor cuidadoso e meticuloso e, mais ainda, um revisor exigente: está revendo o livro pela quarta vez. Para cumprir o prazo prometido à editora Companhia das Letras, reduziu a dedicação a crônicas e aulas e trabalha no livro novo em regime intensivo. Ainda assim, “não sei se entrego até julho, não”.
Num restaurante em São Paulo, no bairro de Higienópolis, onde viveu até alguns anos atrás antes de se mudar para Pinheiros, Hatoum falou sobre seu novo romance e seu método de trabalho. Aos 58 anos, tem cinco livros publicados, premiados e traduzidos. Além dos três citados acima, escreveu Relato de um Certo Oriente (1991) e o memorável Dois Irmãos (2000), seu maior sucesso de crítica e público, com 120 mil exemplares vendidos (o segundo que mais vendeu, Cinzas do Norte, está em 50 mil exemplares). A espera de pelo menos seis anos pelo novo romance, portanto, está dentro de sua média – e dentro de sua absoluta aversão a fazer média, a escrever um livro atrás do outro como se seu ritmo fosse esse. Hatoum nunca deixa de lado a autocrítica; quer sempre chegar aonde não chegou.
E aonde quer chegar com o novo romance? Os críticos midiáticos, que insistem em rotular os autores de acordo com temas e preconceitos, vão levar um susto: O Lugar mais Sombrio não se passa em Manaus, nem sequer se refere à Amazônia. Mas Hatoum não fez essa mudança de cenário em relação a seus quatro primeiros livros para mostrar aos maus analistas que não é um escritor “regionalista”. Afinal, já em seus contos havia boa parcela de páginas distribuídas em outros endereços. E é de um desses textos, Bárbara no Inverno, que se desdobra a história do novo romance, que se desenrola em Paris do final dos anos 70 ao final dos anos 80 e envolve personagens exilados, como brasileiros e cubanos, e sua relação com franceses. “É um livro sobre exílio e paixão em Paris”, define.
É o primeiro romance de Hatoum narrado por uma mulher, uma tradutora francesa que morou na América Latina e divide seu coração entre um brasileiro e um cubano. O autor conta que é seu livro com mais personagens até agora e que, apesar de ser menos descritivo do que Cinzas do Norte, por exemplo, tem um teor realista bem grande, pois identifica a geografia da capital francesa (Hatoum comprou mapas para checar ruas e localidades com precisão) e inclui figuras reais como artistas e autoridades do período (Carpentier, Lam, políticos franceses e cubanos, etc). Em diversas ocasiões, não à toa, Hatoum já falou de sua admiração por Flaubert, especialmente pelo Flaubert de A Educação Sentimental. A atitude literária de Flaubert, seu cultivo da palavra exata e do distanciamento moral, é a principal inspiração de Hatoum.
O livro tem outras inspirações, claro. Uma delas é o ensaio do intelectual palestino Edward Said sobre o exílio, sobre a condição do desterro, do lugar incerto, do “amador”, que nunca se sente em casa, que busca dominar um idioma que não é o seu (daí que as metáforas da tradução e do exílio se encontram), e tudo isso potencializa tanto seus dramas como suas possibilidades. Mas a principal fonte de Hatoum, novamente, são suas memórias. O romance tem muito de autobiográfico, pois Hatoum não apenas viveu na Europa entre exilados e tradutores, mas também conviveu com o engajamento político desde cedo: aos 15 anos, em Brasília, foi detido durante um protesto contra a ditadura militar. Seus romances sempre partem de experiências de seu passado e as recriam com uma densidade que vai da circunstância histórica e social até as ressonâncias míticas.
Ele trata de afastar logo a classificação de “romance político”, embora concorde que essa tradição é fraca no Brasil – com exceção de livros como Reflexos do Baile, de Antonio Callado – em comparação com a literatura argentina ou chilena. Hatoum também não quer que o romance seja visto como “geracional”. O foco, diz, não é a política ou a frustração de uma geração sonhadora, mas “a impossibilidade de misturar esses dois fogos, o da política e o da paixão”, como a narradora francesa experimenta na própria pele ao se envolver com o engajado cubano. O texto conta como as relações amorosas ficam ainda mais conturbadas num contexto de paixões ideológicas, no conflito entre utopias individuais e coletivas. “O lugar mais sombrio é no coração”, diz no final do livro a narradora.
Na entrevista abaixo, porém, Hatoum não se abstém de comentar o estado atual dessa geração, que afinal chegou ao poder, bastante transformada, inclusive no Brasil; o governo de Dilma Rousseff; e sobretudo as revoltas da juventude nos países do norte da África e do Oriente Médio, que ele diz não terem sido tão surpreendentes assim. Ele também comenta o fato de que três de seus livros estão sendo filmados por diretores de renome, como Luiz Fernando Carvalho (Dois Irmãos) e Marcelo Gomes (Relato de um Certo Oriente). Tal interesse confirma não apenas o alcance de Hatoumatualidade, mas também a força de suas narrativas, que transcendem seu tempo e lugar pela abrangência de seu olhar e estilo.
Há três anos você trabalha no novo romance. Sai neste ano ainda?
Estou tentando… Mas deve sair, sim, no segundo semestre. No momento faço a quarta revisão do texto. Prometi o manuscrito para julho. Não sei se entrego, não, mas já reduzi outras atividades e estou concentrado só nele.
Você sempre faz muitas revisões, não? Que tipo de corte faz? Mario de Andrade disse que primeiro escrevia, no automatismo, depois cortava.
É assim comigo também. No caso do Cinzas do Norte, cheguei a fazer dez revisões. São cortes pontuais, de palavras excessivas, não cortes temáticos ou de personagens. Corto os disparates, as anacronias; coisas da linguagem mesmo. Prefiro deixar o texto fluir e depois limpar. Esse romance ficou maior que Cinzas, mas quero que fique menor. Acho que o único livro meu que saiu de primeira, mais rápido, foi Órfãos do Eldorado. Fazia tempo que eu tinha a ideia de escrever uma história sobre esse mito.
É o primeiro romance seu que se passa fora de Manaus. Por algum motivo em especial? O cenário é só Paris?
Sim, é um livro sobre exílio e paixão em Paris. Mas não é para evitar repetir Manaus ou algo parecido, e sim porque a história há muito tempo mexe comigo, pelas possibilidades que ela tem. É um romance narrado por uma francesa que morou no Rio e em Buenos Aires, tem um amante brasileiro e faz tradução de autores hispano-americanos. Também traduz os textos de um amigo cubano, então é um livro sobre Cuba também. Ela conta em paralelo as histórias desse amante e desse amigo.
Há um conto em ‘A Cidade Ilhada’ com esses exilados, não?
Sim, é Bárbara no Inverno. O romance é um desdobramento dessa história, aprofundando a relação amorosa. Tem muitos personagens, tem mais personagens que os outros livros e menos descrições.
Em que época exatamente se passa? É um livro político?
Não, é sobre a impossibilidade de misturar esses dois fogos, o fogo da política e o fogo da paixão… Começa em 1978 e vai até doze anos depois. Ao mesmo tempo, é um romance com bastante realismo, no sentido de que trabalhei com um mapa de Paris, situei fatos históricos, incluí personagens verdadeiros como Alejo Carpentier (escritor e diplomata cubano) e Wifredo Lam (pintor cubano).
Você é grande admirador de Edward Said também. Os ensaios dele sobre o exílio foram uma inspiração?
Foram, sim. Gosto muito quando ele descreve a condição instável do exilado, do desterro, do deslocamento. É um tema forte em minha ficção.
Você foi preso numa passeata em 1968?
Fui detido e depois solto. Eu só tinha 15 anos e morava em Brasília. Morar ali mudou minha vida, me fez ir embora para a Europa. O romance traz muito dessa experiência que tive em Paris e Barcelona, dando aulas, fazendo traduções, convivendo com exilados brasileiros e cubanos.
Não faltam romances e filmes sobre o período do regime militar brasileiro? No Chile e na Argentina vemos muitas coisas e boas.
Claro que faltam. Tivemos livros como Reflexos do Baile, de Antonio Callado, ótimo romance de um escritor que anda injustamente esquecido. Mas não tivemos quase nada mais.
Como você vê essa geração, hoje em parte no poder?
Era uma geração “missionária”, né? Acho que hoje ela se dividiu. Há os que estão desiludidos, mas sem perder a esperança de justiça; há os totalmente desiludidos, os céticos; há os que ainda são ativistas, que trabalham em ONGs, por exemplo, mas sem vínculos partidários; e há os que viraram casaca…
E você?
Estou no primeiro grupo. Acredito em transformações, mas acho que utopias só existem no horizonte das possibilidades. Não acredito em socialismo. Todos os sistemas são criticáveis, claro, e me irrita o que é injusto, desumano, brutal. Hoje, porém, vejo uma geração mais jovem que não se interessa pelo passado recente e acho triste.
O que tem achado do início do governo Dilma?
É muito cedo, mas na política externa ela parece ser um avanço, pela ênfase nos direitos humanos. Na política interna, parece muito amarrada ao PMDB, ao Sarney, e isso é muito ruim. Eis aí uma mobilização que nossos jovens deveriam fazer. Mas não adianta ficar falando mal no Twitter; é preciso ir às ruas, como no Egito.
E o que tem achado das revoltas no mundo árabe? Surpreenderam?
Não muito, na verdade. Aquilo ia explodir a qualquer momento. O governo Mubarak foi terrível. Chegava a deportar opositores para serem torturados em outros países. Um amigo egípcio que mora no Brasil me disse que isso tudo estava prestes a acontecer, que só ia depender das Forças Armadas. Ele mantinha contato com seus amigos do Cairo pelo Facebook, jovens de 20 a 45 anos que acompanham a TV Al Jazira e querem democracia. E os EUA vão ter de optar, agora, entre Israel e o petróleo…
Há três livros seus em processo de adaptação para o cinema, confere? Como vê isso?
Acho ótimo, e os diretores estão animados também. O Luiz Fernando Carvalho já está com o roteiro de Dois Irmãos, escrito por Maria Camargo, que talvez participe dos outros. O diretor de Órfãos do Eldorado será o Guilherme Coelho, o de Relato de um Certo Oriente o Marcelo Gomes. São grandes profissionais. Veremos, mas adaptações demoram.
Fonte: Site Estadão
Nenhum comentário:
Postar um comentário